quarta-feira, 17 de junho de 2015

13 - O cortejo

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (12 - O foral)    


13 – O cortejo
A Maria Zé chegou a sua casa acompanhada pela mãe pouco passava das 15h quando a Sr. Celeste e a Menina Dulcinha já tinham tudo preparado. Depois de terem retirado os bancos da sala para que coubessem mais pessoas, forraram as paredes com um pano branco, fininho como gaze. Colocaram a mesa no meio da sala que usaram para pousar a urna com a criança morta. No fundo colocaram flores. Contrariamente ao que era normal, a criancinha estava na urna deitada de lado, disposição criada pela Dulcinha para dar mais visibilidade às asinhas brancas que a criança tinha nas costas e que saiam parcialmente da urna. Lá fora estava a mesa da cozinha mas, desta vez, coberta com uma toalha branca de linho que a Dulcinha tinha trazido. Estavam lá várias travessas com pataniscas de bacalhau, broa cortada em fatias e malgas para que as pessoas pudessem beber vinho ou limonada.
– Menina Dulcinha, boa tarde, isto está muito bonito, está melhor do que no funeral das minhas criancinhas, ainda era a sua falecida mãezinha a fazer os funerais. Aquilo é que era uma boa pessoa, quando chegou ao fim ainda perdava pelo menos metade do preço dos funerais, também éramos tão pobres ...
– Boa tarde Sr. Isabel, o seu netinho morreu mas eu fiz o possível para que ficasse bonito como quando estava vivo. Tenho a certeza que Deus o recebeu no Céu e fez dele um novo anjinho.
– Pois foi, agora já disse à minha filha que a única forma de esquecer esta tristeza é ter outro e andar com a vida para a frente.
No entretanto, começaram a chegar as pessoas. Vieram irmãos, cunhados, sobrinhos mas a maior parte eram primos, naquela terra parecia que todos eram primos de todos. As pessoas entravam na sala, olhavam para a criança, benziam-se e tornavam a sair para comer uma patanisca, beber um pouco de vinho e dar dois dedos de conversa. “Coitadinho mas foi a vontade de Deus” era a frase que mais se ouvia como se a morte fosse algo banal. Mas também havia quem dissesse “Custa muito ver um filho morrer mas a gente acaba por ultrapassar isso”. Depois começaram a chegar as crianças, primeiro uma, depois outra e mais outra e, passado pouco tempo, já lá estava uma pequena multidão, talvez umas 30 crianças que, seguindo as ordens do Dr. Acácio, não puderam entrar na casa “para evitar os contágios”. Eram os primos em grau diverso que tinham aparecido com o incentivo extra da limonada e dos bolinhos de mel prometidos pela Dulcinha. Além do mais, as crianças gostam do espectáculo, depois de vestidas com as capinhas brancas forradas a penas que a Dulcinha tinha, formavam com os adultos vestidos com as capas vermelhas da confraria, um contraste de grande beleza cénica.
Quando pouco faltava para as 17h, o Padre Augusto apareceu vestido com a alva, toda rendada como se fosse uma combinação de mulher, sobre a batina preta e acompanhado pelo Sr. Mariazinha vestido com a capa vermelha da confraria e que trazia a caldeirinha com a água benta, a sineta e a cruz. Assim que chegou disse “Dominus vobiscum” a que os presentes responderam “Et cum spíritu tuo”. Depois, entrou na sala, pegou na caldeirinha e, com o aspersório, espalhou água benta pela urna e espaço envolvente repetindo “Dominus animam tuam in cælum” a que as pessoas respondiam “Amen”. Depois, benzeu-se “Levantemos a urna”.
O Sr. Costa que entretanto chegou pegou na tampa, pousou-a sobre  o caixão e pregou-a. Normalmente, o caixão era reaberto no momento do enterramento mas, neste caso, já ia definitivamente pregado porque “O Sr. Dr. Acácio disse que, uma vez saído de casa, o caixão não poderia mais ser aberto”.
Se fosse um adulto, seria usada uma carroça mas, como era uma criança pequenina, seria levada por 4 pessoas numa padeola, duas a pegar à frente e duas atrás. Quando o caixão saiu, começou a formar-se a procissão fúnebre. À frente ia o Sr. Mariazinha com a sineta na mão direita, sempre a tocar, e a caldeirinha na esquerda, depois ia o Sr. Padre com a cruz que segurava com as duas mãos, logo seguido pelo caixão e, finalmente, seguina as pessoas, primeiro as crianças com a capa branca ladeadas pelos homens da capa vermelha e, depois, as mulheres e o resto dos homens que não tinham capa.
O cortejo teve que se aperta para caber pelos becos da aldeia que foi necessário percorrer até chegar à Igreja que era insuficiente para abrigar todas as pessoas pelo que a maioria ficou cá fora, no pátio que circundava o templo, meio a conversar, meio a rezar “Pela alma do anjinho”. Latinorium para aqui, latinorium para ali e tornou a sair toda a gente como se tivessem entrado por engano. O cortejo tornou-se a formar para rumar ao cemitério que ficava fora do muro que cercava a aldeia mas, agora, já só formaram as criancinhas e as pessoas que tinham a capa vermelha pois as outras foram à sua vida.
O cemitério era fora do muro que circundava a aldeia, a uns 200m metros de distância. Tinha a forma de um quadrado com 100 m de lado e era cercado por um muro alto, com 2 metros de altura que tinha apenas uma porta virada para o caminho que saia da aldeia. A procissão demorou uns 10 minutos a percorrer a distância que mediava entre a igreja e o cemitério e, quando chegou ao seu destino, o dia estava quase a terminar “Rápido, que é preciso enterrar a criança antes que o Sol se ponha” disse o Sr. Mariazinha que tinha, depois do almoço, aberto meia campa e preparado tudo para o enterramento.
“Vem ali o polícia Vieira” – disse em voz baixa a Menina Dulcinha ao Sr. Costa, seu pai. “Deixa-o vir”. O polícia não era bem querido na aldeia porque, além de não ser uma pessoa dali, gostava de inventar multas e problemas com o único fito de receber umas prendazitas. Assim que chegou à beira das pessoas começou logo a falar em voz alta.
– Parem o enterramento. Sr. Costa, é preciso que abra o caixão para eu ver o estado do cadáver que isto cheira-me a esturro.
– Boa tarde Sr. Polícia Vieira, ao menos boa-tarde, não me custava nada abri-lo mas tenho aqui o atestado do Dr. Acácio a dizer que a criança morreu de tifo e, por haver perigo para a saúde pública, o caixão não pode ser aberto. Veja aqui, veja a cópia do atestado e o original da autorização oficial para o enterramento. Esta autorização veio do seu posto da polícia, veja que está assinada pelo oficial de serviço e tem o carimbo do Sr. Arquiduque. Mas o Sr. polícia faça o favor de ir ali falar com a minha filha que foi quem tratou da papelada...
O Polícia Vieira, enquanto lia os papeis, começou a dirigir-se para a Dulcinha que estava à porta do cemitério a falar com umas pessoas.
– Menina Dulcinha, precisamos de falar em particular, venha aqui se faz favor.
– Sim Sr. Comandante, passa-se algum problema com a papelada? É que fui eu quem foi tratar disso tal e qual como aprendi com a minha mãezinha que Deus lá tem e penso que não há nenhum problema.
– Com esta gente nunca se sabe o que vai sair, são piores do que os gatos. Têm filhos atrás de filhos e, quando lhes dá na cabeça, não se acanham nada em os matar com as próprias mãos. São como os animais.
– Não diga isso Sr. Comandante que somos todos criação do mesmo Deus. Mas tenho aqui uma coisinha para o Sr. Comandante tomar um café – a Dulcinha foi ao porta-moedas e retirou uma nota de 10€ – tome lá Sr. Comandante que o Sr. também se cansou a vir cá e, como vê, os papéis estão todos em ordem.
– Isto tem aqui umas coisitas que davam para uma multa mas hoje, por estar bem disposto, vou deixar a coisa passar.
O polícia virou costas e, sem mais nada dizer, foi-se embora com cara de poucos amigos. A Dulcinha olhou de longe para o pai e fez um sinal com a mão a dizer que o enterramento poderia continuar.
Passaram duas cordas pelo caixão de forma a que fosse possível descê-lo até ao fundo da cova que tinha 7 palmos de profundidade. Assim que retiraram as cordas, o Mariazinha pegou na pá e tapou-a a toda a velocidade. Estava tudo terminado. Aquele que tinha sido deixou defenitivamente de o ser.
– Paz à sua alma.

Capítulo seguinte (14 - A existência) 

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