domingo, 10 de maio de 2015

2 – O defumadouro

Crime e Redenção 
Pedro Cosme Vieira
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Ver o capítulo anterior (1- A anomalia)



2 – O defumadouro
Nos dias seguintes, a Maria Zé e o Francisco conversaram longamente sobre o problema do defumadouro e, em termos racionais, concluíram que um filho não passando de um resultado aleatório de entre milhões de possibilidades e podendo haver escolha a priori de entre esses milhões de filhos potenciais, todos os pais rejeitariam os que tivessem alguma doença grave. Então, parecia-lhes totalmente aceitável pedir à Tia Júlia que rejeitasse os filhos que pudessem padecer da maldita doença. O que a Maria Zé achava incompreensível era o drama que a Tia tinha construído à volta da questão. Se lhe parecia natural que, no meio dos milhares de filhos potenciais que carregava dentro de si, quisesse escolher os mais saudáveis, o que poderia haver no defumadouro de tão terrível? Só poderia ser teatro.
Passados dias de discussão não encontrara nenhum argumento contra a ideia de todos os pais gostarem de ter filhos saudáveis pelo que decidiram então dizer que sim, que se vinculavam ao que a senhora quisesse. Foram os dois, de mão dada pelo caminho que separava o casario à barraca da Tia Júlia, para assumir a decisão “Tia Júlia, queremos mesmo ter filhos pelo que lhe pedimos que faça o defumadouro às nossas crianças. Juramos perante a Tia Júlia e perante Deus que lhe damos carta-branca, não faremos perguntas e aceitaremos todas as consequências e guardaremos segredo sobre tudo o que se passar e acontecer.”
– Agora que disseram que sim, que se comprometeram a assumir em silêncio as consequências deste trato, quando a criança que ainda está para ser concebida fizer 4 meses, vou a vossa casa para lhe fazer o Defumadouro da Terra Santa.
“Mau” pensou a Maria Zé, “Mas depois de a criança nascer haverá alguma coisa que o defumadouro possa fazer?”
Passados dois ou três meses, a Maria Zé engravidou e, passados 9 meses, nasceu uma criança, o Rúben, que era um menino de pele morena, olhos grandes e muito pretos, muito bonitinho. Como tudo parecia estar a correr bem, com o tempo o pacto foi sendo esquecido até que, poucos dias depois de a criança ter feito 4 meses, já sendo noite escura, o cão ladrou e apareceu à porta um vulto vestido de escuro, com o lenço preto a tapar totalmente a cara, parecendo que não queria ser reconhecido por ninguém. Era a Tia Júlia que vinha fazer a visita que já estava programada há muito tempo mas que pareceu ser de surpresa. Trazia às costas um saco de serapilheira cheio de qualquer coisa. Mal entrou no casebre, disparou logo com voz tensa.
– Francisco, estás por aí? Levanta-te e vai passar a noite a casa dos teus pais e, amanhã, espera lá até que te chegue recado a dizer que podes voltar.
E o Francisco, como prometido, disse boa-noite e saiu sem nada perguntar “O que se irá passar” pensou ele enquanto fazia o caminho pela escuridão.
Depois, foi directa ao Rúben que dormia no seu pequeno berço de verga. Acordou-o, fez com que a criança agarrasse os seus indicadores e tentou levantá-la. A criança fez força e ficou dependurada como se estivesse de pé. Depois pegou nela pelo tronco e, como a fazer dela um avião, avaliou até que ponto a criança segurava a cabeça e mantinha o corpo direito. Deitou-a no chão e chamou-a de um lado e do outro a testar se a criança conseguia levantar e virar a cabeça e conseguiu.
– Graças a Deus, a criança está forte, está bem, pelo que estou a ver, vai resistir ao defumadouro.
“Resistir ao defumadouro? Mas claro que vai resistir pois o defumadouro não passa de um ritual sem importância” pensou a Maria Zé.
A Tia Júlia tirou da saca que trazia uma pequena caixa de madeira muito velha – “Também tu e o teu Francisco estiveram deitados neste berço” – um pequeno fogareiro de barro e uns poucos carvões de “Zimbro da Terra Santa”. Depois pediu à sobrinha que esvaziasse a caixa da roupa que estava na arrecadação. Deitou a criança nesse berço velho e meteu-a dentro da caixa da roupa que agora estava vazia. Acendeu o fogareiro com o carvão sagrado, queimou nele “Alecrim, mirra e incenso que também vieram da Terra Santa” que encheram toda a casa de fumo perfumado. Assim que a pequena fogueira deixou de deitar fumo, colocou o fogareiro dentro da caixa da roupa onde estava a criança.
– Agora vamos rezar pois o defumadouro precisa fazer efeito. Deixemos que tudo corra segunda a vontade de Deus, “O Senhor é meu pastor, sei que nada temerei, Ele guia o meu andar, sem medo avançarei.”
Repetiram este salmo e mais rezas vezes sem conta, rezaram, rezaram e rezaram, mais de uma hora, até que o fogo se extinguiu porque todo o carvão se tinha reduzido a cinza. Já passava da meia-noite, altura em que a Tia Júlia disse “Graças a Deus que a criança resistiu. Agora cria-a com todo o amor que tiveres pois esta criança está livre da maldição.” Meteu o berço e o fogareiro no saco enquanto repetia “Bem-aventurado todo aquele que Nele confia”. Nesses entretantos, a Maria Zé meteu-lhe uma nota de 10€ no bolso do avental. Assim que terminou a arrumação, sem mais nada dizer, a Tia Júlia saiu porta fora para a escuridão de forma a que mais ninguém a visse. Desta vez, nem o cão ladrou.
– Obrigada – disse em voz alta a Maria Zé na direcção da Tia Júlia que já tinha desaparecido no escuro. “Afinal, o defumadouro não tinha sido assim tão terrível como tinha antecipado, só não percebo o porquê de tanto drama”, pensou a Maria Zé.
Mal o galo cantou, a Maria Zé levantou-se e decidiu ir a casa dos sogros avisar o marido de que poderia voltar para casa. Ainda sem nada comer, pegou no Rúben, atou-o à volta do corpo e meteu-se a caminho que era pequeno. 
O Francisco tinha 4 irmãos, o que era pouco se comparado com a média da aldeia, mas isso não resultava de a mãe ter tido poucos filhos mas antes de muitos deles, talvez uns 7, terem morrido por causa da miséria, “De fome, doença e tifo”, como era normal na aldeia do Monte. Mesmo sendo relativamente poucos irmãos, como dois deles, já casados e com bastantes filhos, continuavam a viver com os pais, dormindo nuns pequenos barracos de madeira que construíram anexos à casa, à mesa havia sempre umas 20 pessoas. Quando a Maria Zé chegou a casa dos sogros já estavam todos a pé, prontos para comer o mata-bicho. A sogra tinha café acabadinho de fazer no lume, fartura de broa e banha de porco para a barrar e queijo “Podemos ser pobres mas aqui ninguém passa fome, vou ali buscar o queijo”.
Enquanto a sogra foi à arrecadação buscar meio queijo, no meio da algazarra daquela pequena multidão que mal cabia no cozinha, a Maria Zé disse em voz baixa “Francisco, correu tudo bem e, como tínhamos combinado, dei-lhe a nota dos 10€.”
– Ainda bem. Agora, depois do mata-bicho, vou trabalhar e à noite falamos mais em pormenor. 

Ver o próximo capítulo (3 - O desgosto)

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